segunda-feira, 30 de maio de 2011

Redes concelhias BIBLIOTECAS

DREN
Direção Regional de Educação do Norte


Rede Bibliotecas de Basto e Barroso
Contactos geral@rb-bb.net
Parcerias Câmara Municipal de Cabeceiras de Basto, CM de Celorico de Basto, CM de Mondim de Bastos, CM de Ribeira de Pena e CM de Montalegre, Bibliotecas Municipais, Agrupamento de Escolas de Refojos, AE de Arco de Baúlhe, AE de Celorico de Basto, AE de Gandarela, da Mota, AE de Mondim de Bastos, AE do Baixo Barroso, AE de Ribeira de Pena, AE de Cerva, Escola Profissional de Fermil e Centro de Formação de Basto

Rede Bibliotecas de Esposende
Contactos luisa.leite@cm-esposende.pt
Parcerias Câmara Municipal de Esposende, Biblioteca Municipal Manuel Boaventura, Agrupamento de Escolas de Apúlia, AE António Correia de Oliveira, AE de Marinhas, AE de Terras do Baixo Neiva e Escola Secundária Henrique Medina

Rede Bibliotecas de Lousada
Contactos cm-lousada@cm-lousada.pt
Parcerias Câmara Municipal de Lousada, Biblioteca Municipal, Agrupamento de Escolas de Lousada, Escola Secundária de Lousada e Centro de Formação de Associação de Escolas de Lousada

Rede Bibliotecas de Macedo de Cavaleiros
Contactos rbmacedocavaleiros@gmail.com
Parcerias Câmara Municipal de Macedo de Cavaleiros, Biblioteca Municipal, Serviço de Documentação e Informação do Instituto Piaget e Agrupamento de Escolas de Macedo de Cavaleiros

Rede Bibliotecas de Peso da Régua
Contactos rbpr@cmpr.pt
Parcerias Câmara Municipal de Peso da Régua, Biblioteca Municipal, Agrupamento de Escolas Dr. João Araújo Correia, Escola Profissional de Desenvolvimento Rural do Rodo e Museu do Douro

Rede Bibliotecas do Porto
Contactos rbe.porto@gmail.com
Parcerias Câmara Municipal do Porto, agrupamentos de escolas e escolas não agrupadas, Centro de Recursos e Investigação para a Literatura Infantil, Centro de Formação de Associação de Escolas João de Deus e Direcção Regional de Educação do Centro. Disponibiliza os catálogos dos concelhos do Porto, Matosinhos, Gondomar, Maia, Valongo, Paredes, Lousada, Penafiel, Paços de Ferreira, Póvoa do Varzim e Vila Nova de Gaia.

Rede Bibliotecas de Vizela
Contactos bmvizela@gmail.com
Parcerias Câmara Municipal de Vizela, Biblioteca Municipal Fundação Jorge Antunes, Agrupamento de Escolas de Ínfias e AE de Vizela, Colégio de Vizela, Instituto Silva Monteiro, Escola Secundária de Caldas de Vizela e Centro Cultural e Recreativo Raúl de Brandão de Infias

sexta-feira, 27 de maio de 2011

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Mulheres do Mar





Mulheres do Mar

Micas Fabais
(Maria Ribeiro da Costa)


Este artigo é uma autobiografia baseada numa entrevista realizada no fim-de-semana de 04-05 de Novembro de 2006 em Cresteja-Revilhães-Candemil-Amarante e nas memórias que guardo da Micas, desde o dia em que nasci.
Com rigor e isenção vou transcrever as palavras soltas e memórias ditadas por esta mulher de Matosinhos, que com oitenta anos de idade revela uma frescura física e clarividência intelectual dignas de admiração.
Graças a João Ribeiro da Costa, pescador, Albina Rosa deu à luz uma bela menina em 18 de Maio de 1926 (6 de Julho,segundo a certidão de nascimento), a quem chamaram Maria Ribeiro da Costa, mais tarde e ainda hoje, conhecida por MICAS FABAIS. Moravam na rua Heróis de França, onde nasceu, e haviam casado catolicamente na Póvoa de Varzim. Neta paterna de Francisco Ribeiro da Costa e Ludovina Rosa e materna de Manuel André Bicho e Rosa Margarida. Foi solenemente baptizada, em Matosinhos, pelo Abade António d´ Azevedo Maia em 8 de Agosto de 1926, tendo como padrinhos Francisco dos Santos André, pescador e Maria Lopes Sarrão, casados “moradores nesta vila, que não assignam este assento por não saberem escrever”.
Casou em Leça da Palmeira com Francisco Lopes de Matos às 15 horas do dia 18 de Dezembro de 1949, sendo a cerimónia realizada pelo Padre Alcino. Tinha 23 anos de idade. Infelizmente, nunca tiveram filhos. O senhor Francisco – Chico, como eu lhe chamava – era filho de João Lopes Matos e Alexandrina Matos. Nasceu na Murtosa em 14 de Junho de 1926 e faleceu em Matosinhos, em 16 de Janeiro de 1981, com 54 anos de idade; vítima de um AVC (Acidente Vascular Cerebral). A Micas não voltou a casar, nem a ter qualquer outro homem na sua vida, apesar das solicitações. Depois de viúva ainda trabalhou durante mais 3 anos, como salgadeira, na fábrica de conservas “Poveira”.
A sua infância decorreu na companhia dos pais, irmã, Inácia Ribeiro da Costa, que tinha 18 anos de idade quando a Micas nasceu e do irmão António Ribeiro da Costa, que casou com cerca de 17 anos de idade.
Frequentou a Escola Primária Viela do Piolho até à 3ª classe, mas o insucesso levou-a a abandonar o ensino. Daí em diante, apenas lhe restava uma solução - ingressar no mercado de trabalho. Mas, a Lei vigente exigia que o cidadão tivesse 14 anos de idade. Bom, “a barriga só conhece uma lei! Comer é uma necessidade que não pode ser datada por Decreto-Lei. E, assim sendo, começou a trabalhar com 12 anos de idade (em 1938) na fábrica de conservas “Alba”, como salgadeira, onde permaneceu durante 17 anos (até 1955), após os quais passou a laborar na “Poveira”, nos 29 anos seguintes (até 1984), mantendo-se como salgadeira, e passando a ganhar à comissão. Ganhava 3 tostões por caixa. Chegou a salgar 1500 cabazes e a carregar as respectivas caixas na camioneta que seguia para a fábrica, na Póvoa de Varzim. Um cabaz enchia uma caixa de madeira, aproximadamente. Os patrões eram o Sr. Graciano e o Sr. Matos. O Sr. Graciano (poveiro) dava instruções à compradeira (Guida do Almocreve), quanto às quantidades a adquirir, e ia embora.
Em 1947, com 21 anos de idade declarou-se no Grémio das Conserveiras, ano em que a Caixa de Previdência abriu filial em Matosinhos.
Naquela época, finais dos anos 30, Matosinhos era, provavelmente, o maior centro conserveiro do país, e quiçá do mundo, a julgar pelo número e tamanho das fábricas de conservas existentes, nomeadamente, a “Alba”, “Sicma”, “Marques Neves”, “Universal”, “Fábrica Guedes”, “Aguiar Pedroso” (dos Aguiares), “Fábrica Velha” (do Adão Polónia), “Fábrica Chaves”, “Activa” (dos Serranos), “Boa Nova”, “Marques Gomes”, “Record” (na qual a “companheira” era a senhora Maria Teresa que ensinou Micas Fabais a fazer malhas), “Prado”, “Maranteiro” e outras cujos patrões eram algarvios, como “Francisco Alves”, “Caveira”, “Unita” (na qual a “compradeira” era a Ti` Maria Cambeixa e a “salgadeira”, a Linda), e “Dias Araújo” (cujos patrões eram proprietários das traineiras “Portugal IV” e “Portugal VII” que descarregavam o peixe em “Leixões”, e nas quais aquele que viria a ser o marido da Micas chegou a ser tripulante da companha. Das fábricas então existentes, apenas continuam em actividade a dos “Pinhais” (que ainda “faz tudo à antiga”), a “Ramirez” e a “Pátria” (que faz apenas conservas de azeitonas). Eram 21, são 3! Recorda a Micas com nostalgia.
Não esqueçamos que Matosinhos foi “o maior centro piscatório do Mundo!”, conforme este mesmo boletim que está a ler, no seu nº20 (Outubro de 2005).
O dia de trabalho da “Mulher do Mar” chegava a ter a duração de 17h, apenas interrompidas para “mastigar alguma coisa”. A Micas às 7h da manhã estava na “Praia da Sardinha”, onde salgava até às 11h, quantas vezes até às 15 ou 16h. Depois ia para a fábrica (“Alba”). Num dia normal, às 13h ia almoçar a casa. Às 14h recomeçava o trabalho na fábrica e às 19h ia a casa jantar, para, quantas e quantas vezes, regressar à actividade laboral entre as 20h e as 24h. Chegava a casa, comia algo, lavava-se e deitava-se, depois de rezar.
No dia seguinte, às 7h da manhã, estendia as caixas de madeira na areia da “Praia da Sardinha”, onde os pescadores colocavam a sardinha que traziam nos cabazes.
O Sr. Maia – comprador da “Alba” – adquiria os cabazes que os patrões pretendiam, 100, 200, por vezes mais cabazes.
As traineiras aproximavam-se da praia o mais possível. As chalandras faziam o transbordo da sardinha até à praia, donde 2 pescadores da companha transportavam ao ombro o bordão com 3 cabazes, acompanhados pelo virador que despejava o peixe vivinho nas caixas de madeira alinhadas na praia.
A Micas e a Inésia salgavam de imediato a sardinha. Vinha a camioneta, carregavam-na e a viagem de ida e volta até à fábrica era efectuada tantas vezes quanto o necessário. No fim, deslocavam-se para a fábrica a fim de participarem nos trabalhos necessários.
Quando o peixe chegava à fábrica, as mulheres (uma por cada caixa) descarregavam a camioneta e despejavam a sardinha nas mesas de madeira. As fabricantas cortavam-lhe a cabeça e metiam-na num cesto de verga que depois de cheio era vertido num pio de cimento a todo o comprimento da fábrica, onde ficava em moura (tempero de água e sal).
Em seguida, um homem – o fabricante – pegava num cesto e retirava o peixe do pio; as mulheres despejavam-no novamente na mesa e engrelhavam a sardinha que era lavada nos pios e transportada em carrinhos empurrados por um homem, para cozer a vapor numa estufa aquecida por uma caldeira através de um fogueiro. Depois retiravam os carrinhos com um gancho e levavam-nos para secar o peixe, junto às enormes portas da fábrica – o ar da rua é que secava o peixe já cozido.
Depois de seco ia para a secção de enlatar. As mulheres sentadas numa banca, com a lata à frente, retiravam a sardinha da grelha e colocavam-na dentro da lata, uma de lombo, uma de barriga, uma a direito e outra de rabo.
A levantadeira pegava na lata e fazia lote em cruz, levando os lotes ao azeite, onde uma mulher mergulhava as latas no azeite e, num aparador as levava para cravar. Aí, uma outra mulher metia a tampa.
A Micas desempenhou todos os trabalhos inerentes à sua condição de mulher, se calhar demasiados para uma pessoa só, o que, um dia, a levou ao seguinte desabafo:
- “Rai’s parta a minha sorte, qu’inda agora venho da praia e já tenho que vir p’ra aqui!”
A vida era dura. Por vezes apetecia desistir. Mas… o processo de fabrico não podia parar! O descanso não era produtivo.
Depois de cravada, a lata ia para a estufa, afim de a sardinha cozer no azeite. Seguidamente, era colocada numa máquina tipo escada rolante e aí passava numa queda de água para lavar a lata que caía num monte. Pelo toque de duas latas sabiam se estava fechada ou não, ou seja, se tinha azeite para conservar o peixe.
Passado o teste, as latas eram acondicionadas em caixas de madeira que seguiam para o armazém, aguardando a possibilidade de serem comercializadas.
A Micas era alta e calçava socos; vestia uma bata bege e por cima um avental branco de lona.
“Era assim a vida na fábrica”, disse ela.
Os seis tostões por hora eram bem merecidos; suados até ao tutano.
Quando, hoje em dia, cumpro o ritual de abrir de uma lata de conserva e pela minha mente passa todo este processo, ao saborear o fruto de tanto trabalho sinto que estou a degustar um manjar dos deuses. Por favor, não deixem morrer esta tradição! Uma fábrica destas é mais do que uma simples criação de postos de trabalho … é a garantia de que podemos ter o mar à nossa mesa.
Não posso deixar de dizer que a vida não lhe foi fácil nem risonha, mas os momentos de alegria, labor, convívio e aceitação por parte de todos aqueles que tiveram, e têm, a felicidade de cruzar os seus passos, com certeza fazem com que aqueles momentos mais difíceis sejam secundarizados e relegados para segundo plano, apenas emergindo na taciturna solidão do entre quatro paredes, quando, já depois do pôr-do-sol, regressava a casa e por entre um parco jantar se preparava para rezar antes de dormir. Com o nascer-do-sol rezava e o sorriso de quem tem pela frente um dia cheio de afazeres, surgia-lhe e rasgava-lhe a face de lés-a-lés. Lá ia a Micas Fabais!
A religiosidade nas gentes do mar é a convicção de que não estamos sós no Universo. Deus existe, criou-nos e gosta de nós.
Nos seus treze anos de idade era costume as mulheres estarem sentadas numa caixa de madeira, no areal, enquanto esperavam os barcos que, ao serem observados na entrada da barra, lhes traziam a garantia de sustento. Ainda não havia os faladoiros (altifalantes que na doca de pesca anunciavam a chegada dos barcos).
Era Abril, e nas suas caixas, estavam sentadas as vendedeiras todas – Adelaide Gomes Ferreirinha (Adelaide Tarré), Ti Rosa do Malhão, Ti Arminda do Caetano, Ti Guida do Bendito, Emília Caseira, etc. – e eis que entra um barco – o Santo António do Monte – carregado de carapau, peixe que na época “andava pelo ar e ia para o lixo” e, de repente…
- Oh Ti Margarida Mulata vem aí a Senhora da Lapa – disse a Micas – Hui … vem carregada de carapau. E nós era só sardinha. Estava o povo à espera que viessem os barcos… vinham de muito longe.
E, com as mãos cruzadas, disse a Ti Margarida Mulata:
- Ai meu Deus que está tanta gente. Eu, hoje, fazia um rico dia!
Referia-se ela ao peditório, que por vocação fazia, para enfeitar de flores o altar do Senhor Morto, aquando da romaria do Senhor de Matosinhos que teria lugar daí a um mês, em Maio. A sua área de recolha de fundos era a Praia da Sardinha, após o que entregava o dinheiro ao zelador – o Ti Ricardo – que pedia na vizinhança da Rua Silva Pinheiro, onde morava. A Ti Rosa Alegre, viúva, faleceu em 2000, quase com noventa anos. Era muito amiga da minha avó paterna – Adelaide Tarré. Pedia na Rua D. João I e arredores – hoje em dia, a Micas faz a mesma zona – desde a Rua Brito Capelo até ao café Lua.
Antes do Ti Ricardo, o zelador era o Teodoro (sacristão) que faleceu dos pulmões. Já no leito da morte pediu ao Ti Ricardo – na época catequista – que ficasse como zelador.
- Morre descansado que eu tomo conta! - prometeu ele.
A Micas abraçou esta honrosa missão por brincadeira. Ainda sentadas nas caixas, vendedeiras e salgadeiras aguardavam a chegada de um barco com sardinha, enquanto falavam da sua vida e faziam croché. Quando a Ti Margarida Mulata disse – Eu, hoje, fazia um rico dia – a Micas, de repente, afirmou:
- Dê-me a saca!
Era uma saca de chita que ainda hoje tem na sua posse.
- Oh minha rica filha, tu vais com a saca?
A Micas arrumou a lã e pediu à Mina (irmã do Regufe e salgadeira do Dias Araújo) que a acompanhasse.
- Ai, eu não vou! – disse a Mina.
- Oh, então eu não vou. – esmoreceu a Micas.
E a tia da Mina (Encarnação, que morreu com quase cem anos) disse, num tom esperançado.
- Vai mulher, vai com ela.
- Anda Mina. - Insistiu a Micas.
- Eu vou para te fazer companhia. Eu não peço – disse ela.
Para lá do trilho do comboio não iam pedir.
- Bote aqui qualquer coisinha para o senhor de Matosinhos – dizia a Micas para quem passava.
- E para a minha terra quem bota? – retorquiu um forasteiro.
Mas, lá iam metendo uma moedinha de 5 tostões, 25 tostões, 5 escudos… 10 escudos já era um milagre!
- Vamos embora que já temos um ror de dinheiro. – disse a Mina.
Entretanto, ao micro, ouviu-se uma voz que dizia: - Micas da Alba às caixas!...
Andava no trilho a pedir. Correu. Quando chegou às caixas já lá estavam os pescadores com os bordões do peixe.
- Salguei e fui para a fábrica… e tudo se passou.- segredou-me ela.
- Entretanto, cheguei à fábrica, a pé, e pergunto para onde vou à capataza (Sara, que eu tratava por Sarinha) e ao Anacleto que era o mestre da fábrica, e ela disse-me assim - Vai para o azeite… que era para as cravadeiras!
- Rai`s parta a minha sorte. Ainda agora venho cansada de carregar peixe e já vou para ali! – resmungou a Micas.
- Mas não vais, porque estão a chegar ao escritório o Sr. Alves da Silva (patrão) e o Sr. Acácio (patrão) que pediram para lá ires. – disse a capataza.
- Eu que fiz para ir ao patrão? – perguntou a Micas preocupada.
- Não sei filha.
Acto contínuo, a Micas começa a chorar.
- Não fiz nada. Nunca tinha sido chamada ao patrão.
Os colegas diziam-lhe: - Não chores. Não fizeste nada. Porque estás a chorar? Será para outra coisa.
Subiu ao escritório e vendo-os sentados perguntou: - Dá licença?
- Entra! – respondeu o patrão.
Entrei… virou-se para mim e disse-me assim:
- Sabes para o que te mando chamar?
- Eu não! Não fiz nada!
- Não fizeste nada?!
- Eu não.
- Então aonde estavas quando o Sr. Maia comprou o peixe e tu não estavas no local de trabalho? Foi preciso chamar-te ao micro!
- Ai, foi por isso que o Sr. Maia me chamou aqui à presença do Sr. Alves da Silva?
- Sim, foi porque eu quero saber porque abandonaste o trabalho!
- Oh, Sr. Alves da Silva, eu fui pedir!
- Pedir?!
- Sim, pedir. Não estavam barcos com sardinha!
- Pedir para quem?
- Os barcos vieram com peixe e a Ti Margarida Mulata não podia… e eu fui. Eu fui para as flores do Senhor de Matosinhos, para o altar do Senhor Morto.
- Para o altar do Senhor de Matosinhos?
- Não, para o altar do Senhor Morto! Olhe, foi o que eu fiz. Pensei que me tinha chamado por o Sr. Maia lhe ter feito queixa de mim… quando eu enchia os sacos de peixe aos irmãos para vender na loja (tasca) do Flinto (Casa de Pasto)... Viraram-se um para o outro (os patrões) e disseram:
- Até foi bom tê-la chamado! Olha, tens aí a saca?
- Não.
Pegaram em mil escudos, cada um, e deram-lhe para meter na saca, enquanto afirmavam – Ficas autorizada a ir pedir quando não houver peixe nas caixas.
O Sr. Maia, de tarde pelas 16/17 horas, foi à fábrica. Ia dar a volta… verificar se o peixe estava em condições. A Micas ia a meter o tabuleiro no azeite, quando o viu por cima do ombro. – Olhe, quando não houver peixe, estou autorizada a ir pedir e quando for precisa têm que me chamar ao micro. - Atirou-lhe com os sacos de sardinha dos irmãos.
No outro dia, a Ti Margarida conta o dinheiro e tinha 7 contos! A Micas meteu mais 2 contos.
- Oh, minha filha… que já tem dinheiro de sobra para as flores. Deus te dê boa sorte, que te dê um homem que te trate bem.
- Mas, amanhã eu vou pedir outra vez. Agora tenho ordem! – insistiu a Micas.
A Ti Margarida entregou o dinheiro ao Ti Ricardo (zelador do altar do Senhor Morto) e foi, pessoalmente, à fábrica agradecer ao Sr. Alves da Silva.
- Não tem nada que agradecer… (a Micas) está autorizada a pedir – respondeu ele.
- Ela onde está? – perguntou a Ti Margarida.
- Acolá!
Dirigiu-se a ela, abraçou-a e agradeceu-lhe.
Naquela época, com 7 contos enfeitava-se o altar.
Aos 17 anos de idade, decidiu abraçar, definitivamente, a missão. Juntou 15 escudos no 1º dia. Eram necessários 17 ou 18 contos para enfeitar o altar durante todo o ano, mas com 10 ou 11 contos já se tinha um altar muito rico no momento das festas.
Após o casamento com o Chico (Francisco Lopes de Matos), este proibiu o peditório, por volta dos anos 60.
- Não… não acabou! Enquanto for viva… vou! – respondeu-lhe a Micas peremptoriamente.
Moravam na Rua 28 de Maio, 156 – Rua 1º de Maio, após o 25 de Abril de 1974. A senhoria era Adelaide Tarré (Adelaide Gomes Ferreirinha, que nasceu em 9 de Maio de 1907 na Travessa Serpa Pinto e faleceu em 13 de Novembro de 1979, casada com Emílio Taineta – Emílio Ferreira Patrício - , em 28 de Janeiro de 1932). – Oh, Sr. Francisco não se dê mal por causa disso – afirmou ela debaixo da ramada do quintal.
- Não tenhas vergonha. Não vou pedir para nós…nem para comer…graças a Deus – referiu oportunamente a Micas.
Estiveram casados 31 anos.
- Vê-de lá o marido que esta senhora arranjou – retalhou, uma vez, o Padre Fabião, algures entre finais do Sec. XX e princípios do Sec. XXI, num momento em que a Micas contava toda esta história às crianças que, sentadas na Igreja Paroquial de Matosinhos, a ouviam atentamente. – Esta senhora é um exemplo de humildade e dedicação à Igreja. Não tenham vergonha de servir a Igreja no futuro.
Mas, a história não acaba aqui. Quando a Ti Margarida Mulata ( irmã do Ti João da Mulata) adoeceu, pediu à Adelaide Tarré que dissesse à Micas para a ir ver. Estava já muito doente e a Micas já era viúva.
- Olha, eu já não posso trabalhar. Vai na mesma pedir – lamentou-se ela no seu leito.
- Oh, ela vai! – retorquiu a Adelaide Torré, dando-lhe aquela saca de chita. Pegou nela, e até hoje mantém-se a pedir.
- Já que vem pedir, vem ajudar! – dizem-lhe, por vezes, as pessoas em tom amigável, ao que ela acede com alegria.
A Ti Rosa Alegre, algum tempo antes de falecer, sofreu uma queda grave. Depois de recuperada, foi a casa da Micas pedir-lhe que a acompanhasse pelas casas onde pedia, dizendo que, quando não pudesse fazê-lo, seria a Micas a substitui-la. Assim foi, após o seu falecimento, em 2000. Entretanto, face às circunstâncias, o Ti Ricardo solicitou à Micas que tomasse conta do altar, porque, afinal, era ela quem arranjava o dinheiro. – Oh, isso não! – respondeu ela.
- Faça… faça, Micas – insistiu ele.
A Micas Fabais disse sempre que não. Pouco antes de falecer, o Ti Ricardo adoeceu gravemente e o Padre Fabião foi visitá-lo. Foi, então, que o Ti Ricardo lhe rogou que pedisse à Micas, após o que esta cedeu. O Ti Ricardo viria a falecer nas vésperas do Natal de 2002 e a Micas Fabais passou a ser a zeladora do altar do Senhor Morto, na Igreja Paroquial de Matosinhos.
Em 2006, as flores do altar mais caro custaram 700 contos (cerca de 3500€).
Voltando atrás no tempo, ao momento em que a Micas começou a trabalhar, a pesca era efectuada com base na observação dos elementos naturais. – Antigamente era à proa, pelos mascatos. E, assim, sabiam que havia peixe – disse ela.
- Bota ao mar – gritava o homem da proa. A rede era lançada ao mar. A companha fazia 6 ou 7 lanços. – concluiu.
Naquela época, o Chico andava com os bordões. Aos 14 anos de idade (em 1940) tirou a cédula marítima. Não a podiam obter antes. Fazia parte da companha da traineira “Pardela”, cujo responsável era o Mestre Manuel da Afurada.
Nos anos seguintes, a Micas e o Chico viam-se quase diariamente e quando tinham 18 ou 19 anos (em 1944 ou 1945) começaram a namorar. Foi na Festa da Senhora da Hora, que ocorre duas semanas antes do Senhor de Matosinhos. Os dois pouco dançavam e ficaram a falar…e foi desde aí.
Em 1947, a Micas foi a Fátima a pé pela primeira vez, 30 anos após o aparecimento da Nossa Senhora aos pastorinhos. Tinha 20 anos de idade. No 1º dia “ iam sem rumo até Ovar”.No percurso, um soldado que integrava o grupo, queria desistir. Não falava, por promessa, e os pés estavam cheios de bolhas. Era a Micas que o tratava. Conseguiu convencê-lo a peregrinar até Fátima. Levavam consigo a roupa do corpo e acartavam à cabeça, louça e cobertores. Manteve esta peregrinação, ininterruptamente, durante os 29 anos seguintes.
Naquele ano, uns meses mais tarde, de repente o “mundo desabou a seus pés”.Era a fatídica noite de 1 para 2 de Dezembro de 1947. O seu pai faleceu no naufrágio. João Ribeiro da Costa era o nº 14 com a matrícula 6229 da Capitania da Póvoa de Varzim. Morreu afogado junto à Praia de Francelos, na traineira São Salvador nº P447C, matriculada no dia 26 de Novembro 1947, na Capitania do porto do Douro , ou seja, 7 dias antes do naufrágio. O mestre era o Tio Manoel da Cunha Fôlha – Malha Lassa. Segundo informações morreram todos os pescadores. Era uma traineira a vapor com uma tonelada bruta de 61,67 toneladas.
A notícia da tragédia rapidamente se espalhou. As mulheres aos gritos e com as crianças ao colo, corriam noite fora em direcção à praia. A Micas, com os pés na areia procurava o pai - Davam sinal aos filhos - acreditava ela. Esteve 7 dias sem sair de casa, tamanha era a mágoa, e manteve luto por 5 anos.
Entretanto, a vida continua. O Chico andava com os bordões, após o naufrágio. - Mas, quando veio os radares ele foi com o mestre para o radar – esclareceu a Micas. Era o Mestre Dionísio do Mar da traineira Laura Maria. – O radar estava na casa do leme. Tirou-o do bordão e meteu-o a virador…mas não dava cabazes – disse ela. Era usual darem um cabaz à salgadeira por cada 100 virados para as caixas.
Entretanto, casam-se.
Às 14/15 horas o Chico saía para o mar e ao passar na praia despedia-se da Micas, quando ela estava a salgar. – Por vezes, chegava a casa por volta das 13 h do dia seguinte…mas havia ocasiões em que nem sequer vinha a casa – disse ela. Utilizava um saco de cabedal, comprado na “Gónia”, onde transportava num “termos” a sopa e a comida, para além do pão e da garrafinha de “Água de Castelo” com vinho.
O primeiro casamento a que o casal assistiu ocorreu em 22.Jan.1961. Casavam António Gomes Ferreira Patrício e Maria Amélia Lopes da Fonseca – meus pais e ambos filhos de pescadores. A Micas foi, então, a primeira vareira a usar um casaco comprido, preto com uma pele também preta. Mais tarde, ofereceu o casaco à sobrinha Carmina e do vestido azul petróleo fez uma blusa.
Conhecer o passado é ter a certeza de que o presente está vivo, porque sem passado não haveria presente. “Memories are memories”. Aquilo que somos hoje é fruto do passado dos nossos ancestrais. Prestar-lhes homenagem é apenas dizer-lhes que agradecemos do fundo do nosso íntimo, o facto de terem existido. Numa existência que foi sobrevivência contra ventos, rumos e marés…mas que nos trouxe até cá, até hoje…a bom porto.
Apesar de este artigo ir já bastante longo, não consigo deixar de relatar mais um episódio da vida desta fabulosa mulher.
Como já disse, em finais da década de 1930 ainda não existiam os “faladoiros” (altifalantes que, espalhados pela praia, anunciavam a hora de chegada dos barcos, a espécie que haviam pescado e as quantidades, bem como outras notícias de interesse). Não sei bem em que ano foram instalados, mas, a partir de então os comunicados passaram a ser feitos pelo Sr. Almeida, que era o porta-voz da Rádio Matosinhos/Pesca, situada na Av. Serpa Pinto.
- Quando os barcos andavam à rola, o Mestre Caravela, conhecido pelos seus dotes de fadista, aproveitava para animar o recinto da “Praia da Sardinha”, cantando, entre outros, o fado “Lá vão elas / Naus de Infante a navegar/ Unidas, as caravelas / Por sobre as águas do mar / Lá vão elas…”, - trauteou a Micas. Acabou por ser proibido de o fazer, pelo Comandante da Capitania do Porto de Leixões, o qual protagonizou, anos mais tarde – por volta de 1952 – um outro episódio que envolveu, para além do Mestre Caravela, o próprio Chico, o meu tio João (João Rodrigues Crista), o Tone Regufe e o Zé Brandão.
Naquela época, os barcos saíam para o mar a qualquer hora, ao Domingo. - Às 13 ou 14 horas se fossem para o Mar da Figueira; às 18 ou 19 horas se fossem pescar para mais perto. Era conforme calhava - disse a Micas.
Reunidos no Café Abel, decidiram que, aos Domingos, deviam sair às 10 horas da noite. O Comandante da Capitania apoiou-os mas …. vá-se lá saber porquê … logo os denunciou à PIDE, citando dois nomes – Chico e Mestre Caravela.
- O Caravela estava a comer. Chamaram-no cá fora e levaram-no preso. Esteve 10 dias na Cadeia da Rua dos Caldeireiros – referiu a Micas.
Por coincidência, o Chico escapou da prisão, porque acabara de embarcar na “doca nova”, rumo à Venezuela. Viajou no navio de cruzeiro “Serpa Pinto”.
Este desfecho remonta à década de 1940. O Chico não queria ir à tropa, mas na inspecção militar foi chamado para a Marinha. O pai tudo fez para o livrar. Em 1947, deu 50 contos (!!!) a um soldado. Acabou por não ir para a Marinha, mas foi para Tancos, onde chegou a 1º Cabo. Quando os da sua incorporação vieram embora, ficou mais 3 meses para dar instrução. Decorria o ano de 1949.
Entretanto, o pai do Chico que era pescador, decidiu emigrar para a Venezuela. – Andava p’ra lá! Não sabia pregar um prego. – comentou a Micas. Quando um primo do Chico, que também tinha emigrado para aquele país da América Latina, regressou, disse-lhe que o pai não estava bem. Era filho único e não gostou de saber que o pai se encontrava em tão precária situação. Com 25 anos de idade foi lá buscá-lo! Trabalhou durante 3 anos a limpar piscinas afim de arranjar dinheiro para trazer o pai. E, assim, escapou de ser encarcerado pela PIDE. Há males que vêm por bem! - diz o povo.
Em 1960, alugou a casa que habitou até Julho de 2006, momento em que decidiu ir viver para o Lar de Idosos da Associação dos Pescadores Aposentados de Matosinhos – Instituição Particular de Solidariedade Social – que tem como Presidente o Sr. José Brandão (acima referido como Zé Brandão). É a sócia Nº42. Bem hajas, Micas Fabais!
Não posso terminar este artigo sem referir o prestimoso e inigualável serviço que o NAPESMAT tem prestado aos pescadores de Matosinhos e às “Mulheres do Mar”, em particular; bem como à cultura da nossa terra, em geral. Continuem de mangas arregaçadas…o vento está de feição! Só nos falta o “Museu do Pescador e das Artes de Pesca” e a vontade política para o concretizar. As memórias, vocês conseguiram escrevê-las!
P.S. Peço desculpa por tratar alguns personagens por “TU”, mas foi assim que a Micas Fabais se lhes dirigiu ao longo dos tempos.


Prof. António Patrício

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Casa dos Pescadores de Matosinhos















Azulejos da Sala de Espera da Casa dos Pescadores de Matosinhos

N A P E S M A T - Núcleo de Amigos dos Pescadores de Matosinhos















N A P E S M A T - Núcleo de Amigos dos Pescadores de Matosinhos

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Serena e/ou Sereia




Trabalho de Noémia Travassos 90 X 70 cm


quinta-feira, 12 de maio de 2011

Peça de Teatro - "O quadrado roda como a circunferência"









PEÇA DE TEATRO:


"O Quadrado roda como a Circunferência" retorna aos palcos; desta vez no Auditório Mirita Casimiro/Viseu, pelas 21h30, no âmbito do festival de Teatro Jovem 2011.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

terça-feira, 3 de maio de 2011

Associação de Amizade e Apoio à Língua Portuguesa no Mundo



Associação de Amizade e Apoio à Língua Portuguesa no Mundo - Sessão solene que vai ter lugar no próximo dia 6 de Maio, 6.ª feira, pelas 21:00 horas na Aula Magna do Instituto Politécnico de Viseu, tendo como objectivo a criação da «Associação de Amizade e Apoio à Língua Portuguesa no Mundo». Este importante evento tem garantida a presença, entre outras personalidades, do Prof. Doutor Mário Filipe, Vice-Presidente do Instituto Camões, e do Eng.º Domingos Simões Pereira, Secretário Executivo da CPLP. Será prestada pública homenagem a todos os Professores «que, com amorosa e criativa sensibilidade, imaginação, inteligência, dedicação e competência, promovem e orientam o seu ensino e a sua aprendizagem ou que, pedagógico-didacticamente, a accionam, com adequada mediação comunicativa, na leccionação dos demais programas curriculares, sejam das áreas das Humanidades, das Belas Letras e das Belas Artes sejam das áreas da Ciência, da Técnica e da Tecnologia» e a todos quantos, nas áreas da Comunicação Social, da Saúde, do Direito, da Administração Pública, da Economia, da Vida Empresarial e demais Instituições e Organismos de relevante acção em todas as dimensões Vida Comunitária da Cidade e da Região, têm contribuído para a valorização da mais esplendorosa, perdurável e irradiante criação de Portugal — a Língua Portuguesa —, no lapidar ajuizamento do Prof. Doutor Vítor Aguiar e Silva. Este evento, que integra na sua Comissão de Honra diversas personalidades da Vida Académica, Cultural, Educativa, Política, Religiosa, Empresarial, Militar e dos demais relevantes sectores e instituições sociais da Cidade e da Região, conta, como ficou dito, com a presença, já confirmada, do Secretário Executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e do Presidente do Instituto Camões, sinal evidente da importância que a criação desta Associação já suscitou, sendo de sublinhar que Viseu e o seu Instituto Politécnico se vão transformar, deste modo, em centro institucional e simbólico da Língua Portuguesa à escala planetária. Do programa oficial, além das intervenções de natureza académica e cultural, constam, entre outras componentes, um momento musical pelo Orfeão de Viseu e a declamação de poemas pelo talentoso Guilherme Gomes.

Língua materna - legado, tesouro e memória… O tempo é tão leve, tão fluido e tão enganador que não se dá por ele... O que sentimos, o que pensamos e o que sonhamos transborda dessa energia primordial, fascinante e misteriosa que nos habita e nos move: a Vida! E a vida que somos, que temos vindo a ser na linha do tempo, é um crescendo de horizonte sem fim... Ainda ontem, mal acabavámos de despir o bibe do jardim-de-infância, concluíamos uma primeira e decisiva fase da nossa carreira de estudantes: o 1.º ciclo. E como foi determinante essa fase! Conquistámos, então, a chave mágica do alfabeto e, com ele, a língua que vínhamos aprendendo desde o berço, ao colo de nossa mãe, adquiriu uma incontornável dimensão, mais densa e mais poderosa: passámos a saber ler e escrever. Com ela a circular, como o leite materno, na alma e no coração e a fulgurar, alfabética e irradiante, em nossos olhos e em nossos dedos, entrámos no mundo das histórias de fadas, abrimos páginas de saber e de encantamento, ensaiámos cálculos acrobáticos, criámos os nossos primeiros poemas, demos nova forma aos nossos sonhos, realizámos testes de aprendizagem ritmados pelo silêncio que pensa, cadenciado, aqui ou ali, por uma lágrima ou por uma gota de suor... Fomos, assim, crescendo em sabedoria e em virtude, moldando o nosso modo de ser e de estar no mundo, tecendo, seguramente, uma teia de sólidos laços, criando uma roda viva de amigos e de festa, ao mesmo tempo que nos fomos preparando para mais exigentes desafios... Com a consumação desse fundamental trajecto de escolaridade que (simultaneamente com o desenvolvimento global das nossas capacidades e competências, com o aperfeiçoamento das nossas atitudes e a consciência da primazia dos valores) visou promover e aprofundar, de modo reflectido, o nosso entendimento do que é a cidadania, do que significa a sua assunção como projecto e o seu exercício livre e responsável, passou a tomar vulto crescente o próprio significado de todo o nosso agir enquanto cidadãos... Dentro em breve, acabávamos de exercer o direito e o dever do voto, o poder de intervir na vida da Cidade e de tomar parte, também, na modelação do seu destino... Mas, se bem pensarmos, a consciência de tudo isso ficou a dever-se, nuclearmente, à crescente apropriação que fomos fazendo da nossa língua e do homólogo influxo vincante e estruturomorfo que ela foi exercendo em nós bem como às conquistas sapienciais que fomos protagonizando nessa vital interacção: nós a sermos, por um lado, cada vez mais nós próprios e mais outros nela e com ela; ela a ser, pelo outro, cada vez mais ela dentro de nós... Não deixemos, então, que nos calem “Os Lusíadas” para podermos continuar a sentir circular em nossas veias, em nossos olhos e em nossas mãos, a seiva fecundante da língua e a alma fundadora, iluminante e universal que pulsa no ritmo e na magia das suas estâncias canoras e que nos fazem cidadãos do mundo inteiro («Por mares nunca de antes navegados...» [Lus. I, 1], «... novos mundos ao mundo irão mostrando», [Lus. II, 45]). Fernando Paulo Baptista